Os Estados Unidos são a maior potência militar da história, têm o maior PIB (US$ 15 trilhões) do planeta e produz um de cada quatro dólares de riqueza do mundo. Desde a primeira eleição presidencial, em 1789, ano da Revolução Francesa, os Estados Unidos sustentam a mais antiga, estável e inabalável democracia dos tempos modernos - e, também, a mais bizarra.
O americano não vota para presidente, vota no eleitor do presidente. Um colégio eleitoral, que não se reúne, envia seu voto pelos correios para decidir quem ocupará a Casa Branca. Num país de 313 milhões de habitantes, onde o voto não é obrigatório, apenas um entre cada três americanos compareceu às seções eleitorais de 2008, divididos entre Barack Obama e John McCain. Esses estoicos 130 milhões de eleitores não escolheram entre um e outro, mas apenas os 538 grandes eleitores que têm o privilégio de sagrar o presidente. O sistema eleitoral é aberto, mas só dois partidos disputam, de fato, a presidência.
Os Estados mais populosos têm, proporcionalmente, mais cadeiras no colégio eleitoral, mas são os pequenos que somam forças para desempatar o jogo, graças à regra que vigora em 48 dos 50 Estados: the winner takes all, o vencedor leva tudo. Se um candidato vence com 51% dos votos locais, ganha todos os delegados estaduais, reduzindo a pó os 49% do derrotado.
É um processo longo, complicado, caro, que começa em janeiro com as eleições primárias nos Estados e termina seis meses depois, com as convenções nacionais que escolhem os eleitores que vão ungir o escolhido, não necessariamente o mais votado no voto popular. Em 2000, o democrata Al Gore teve 543 mil votos mais no país do que o republicano George W. Bush. Mas perdeu por míseros cinco votos no Colégio Eleitoral de 538 delegados, graças à fraudulenta apuração de votos na Flórida, governada por Jeb Bush, irmão do republicano, que bateu Gore ali por apenas 537 votos num Estado habitados por 18 milhões de pessoas, o quarto mais populoso do país.
O insuspeito Departamento de Estado divulgou uma cartilha para explicar o funcionamento da eleição americana: "O sistema de indicação dos candidatos presidenciais parece complexo e até mesmo caótico. E de fato o é", reconhece na abertura sobre prévias. O curioso, também, é que o voto não é secreto, nem mesmo fiel. Imagina-se que o voto popular acaba condicionando o voto do delegado no colégio eleitoral, mas isso nem sempre acontece. Em oito eleições no Século 20, entre 1948 e 2000, 158 delegados não votaram nos candidatos que deveriam representar no colégio eleitoral.
A primeira infidelidade explícita ocorreu logo na segunda eleição, na sucessão do pioneiro George Washington, em 1796, quando um delegado que deveria votar em John Adams acabou votando no oponente Thomas Jefferson. Em 2000, um eleitor democrata do Distrito de Columbia votou em branco, desprezando o candidato de seu partido, Al Gore.
Os infiéis acabam sendo identificados, e o voto deixando de ser secreto, pela vinculação direta entre a eleição do delegado e a eleição do presidente. O juiz da Suprema Corte dos EUA, Robert H. Jackson, definiu cruamente em 1952 o que se espera do privilegiado cidadão destinado a votar no presidente: "Os eleitores (membros do colégio eleitoral), embora sejam pessoas eminentes, independentes e respeitáveis, se tornam oficialmente servos voluntários dos partidos e deixam de ser entidades dotadas de intelecto".
Na primeira terça-feira de novembro (dia 6, este ano), os eleitores do país fazem fila para escolher os delegados que vão representá-los, além de apontar seus candidatos favoritos pelo voto popular. E, na segunda-feira seguinte à segunda quarta-feira de dezembro (dia 17, este ano), os 538 super-eleitores escolhidos nem se dão ao trabalho de viajar: colocam seus votos num envelope e mandam para o Senado, em Washington, que conta os votos no dia 6 de janeiro. Duas semanas depois, o candidato que obteve 270 votos desse eleitorado exclusivo é empossado no Capitólio.
A matemática dessa eleição é bizarra. Quem consegue 90% ou mais dos votos do pequeno Estado de Montana, leva para o colégios todos os seus três delegados. Se alguém ganhar com apenas 51% dos votos da Califórnia, o mais populoso, levará de roldão todos os seus 55 delegados. Na prática, os sete Estados com maior número de habitantes, que incluem Texas e Nova York, somam 209 delegados, quase 40% do total do colégio eleitoral. A proporção entre delegados e população no colégio acaba criando uma desproporção na representação do voto popular. Um eleitor de Estados pequenos, como Montana ou Dakota do Norte, vale matematicamente mais do que um eleitor de Estados grandes, como Califórnia ou Texas.
A eleição indireta americana é, segundos os historiadores, uma tortuosa tentativa para frear a democracia direta, a autocracia partidária e a demagogia dos políticos. A origem histórica desse sistema tem raízes na origem do país. Recém-libertados do jugo britânico, os Founding Fathers geriam uma confederação de 13 colônias, ciosas de sua independência, que agiam como 13 países autônomos, muito desconfiados de um poder central. O país jovem de 4 milhões de pessoas, alojadas na costa atlântica, não tinha rede de transportes, o que inviabilizava uma campanha eleitoral ampla. E, arredios aos partidos políticos que lembravam a Coroa de Londres, os pais da pátria professavam um lema: "O cargo deve procurar o homem; o homem, porém, não deve procurar o cargo".
A hegemonia dos Estados é tão forte, no país, que não existe uma lei eleitoral federal. Cada Estado tem a sua, o que gera fórmulas e variantes para a escolha dos candidatos e delegados dentro das prévias, dos partidos e do colégio eleitoral. O intrincado, longo processo de escolha do colégio torna impossível a eleição de um candidato regional para a Casa Branca, já que nenhum feudo reúne, sozinho, um contingente eleitoral suficiente para garantir a vitória.
A eleição americana é um sistema complexo e caótico, como reconhece o governo. Mas, espantosamente, a democracia tem funcionado ali, sem maiores sobressaltos institucionais, nem mesmo a sombra de um impensável tentação autoritária de seus militares. Uma proeza invejável para quem detém o maior poder bélico da história. A democracia não apenas convive com o poderio esmagador das Forças Armadas americanas. Exerce ali sua inquestionável voz de comando, expressa por Lincoln em Gettysburg, como manifestação da suprema vontade do governo do povo, pelo povo, para o povo. Um exemplo vitorioso há 223 anos.