Ronald de Carvalho, Jornalista - Instituto Alvaro Valle
A esquerda conseguiu pelo voto, no início do século 21, o que não conseguiu pelas armas no turbulento final do século 20: a conquista do poder nos principais países da América Latina. A 'onda vermelha' varreu o continente de norte a sul, domesticada pelas urnas e orientada pelo pragmatismo político. Mas, neste rubro vagalhão, ninguém desfruta de um céu tão azul como o Brasil, transformado em líder regional graças a uma estabilizada política social que ampliou seu mercado interno e lhe garantiu o reconhecimento externo pela pujança crescente da quinta maior economia do planeta.
Essa vitória brasileira começa com uma derrota em 1989, quando o sindicalista de esquerda Lula perdeu para o populista de direita Collor. O alarmista líder da indústria Mário Amato sinalizou, antes da eleição, o perigo iminente: "Se Lula ganhar, 800 mil empresários vão abandonar o país". Treze anos e três eleições depois, quando Lula enfim ganhou a presidência, Amato, ainda presidente da poderosa Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP), explicou sua decisão de permanecer no país: "O mundo evoluiu e o Lula também".
Santa verdade. A vitória de Lula em 2002 nasceu com a "Carta aos Brasileiro", um documento de princípios que não só apascentou a burguesia e evitou a diáspora empresarial, mas garantiu ainda o apoio crescente das grandes corporações ao ex-líder barbudo amansado pela política de conciliação entre capital e trabalho. Nunca antes, na história desse país, os bancos tiveram tantos lucros como nos oito anos dos dois mandatos consecutivos do líder do PT, que teve base política no Congresso, sustentação econômica no empresariado e apoio popular na sociedade para ampliar uma classe média que lhe garantiu o IBOPE e a eleição da sucessora, Dilma Rousseff, em 2010.
Saiu de campo a retórica do confronto ideológico e entrou na pauta o debate mais conclusivo da economia de resultados, marca desta pragmática Nova Esquerda - mais preocupada com o bolso do trabalhador do que com a cartucheira do revolucionário. Esta conversão do PT e seus sindicalistas às premissas básicas da economia é que explica, na primeira década do novo século, a força crescente do Brasil no contexto regional e internacional, como potência emergente que impõe sua força econômica e prestígio político.
O Brasil consegue se equilibrar entre os Estados Unidos, o velho Satã da disputa de ideologias da Guerra Fria, e Cuba, o antigo paraíso comunista fossilizado num regime provecto de um aparelho burocrático controlado há meio século pelos irmãos Castro. A serenidade brasileira contrasta com a turbulência de vizinhos mais agitados. O mais notório é Hugo Chávez, que chegou ao poder pelo voto em 1998, após uma fracassada tentativa de golpe seis anos antes. No poder, converteu-se pelo voto, ganhando duas eleições seguintes e superando alguns plebiscitos, mas sempre com um discurso agressivo contra inimigos internos e um externo - os Estados Unidos, que apesar da retórica belicosa de Chávez compram 1,5 milhão de barris diários de petróleo da Venezuela, 65% da produção do país.
A queda na cotação internacional do petróleo agora dobra, um pouco, a língua afiada de Chávez, assim como a de seu principal discípulo na região, o inflamado Rafael Correa, do Equador, que chegou a embargar uma hidrelétrica construída no país pela brasileira Odebrecht. Na Bolívia, Evo Morales chegou a ocupar com tropas militares as refinarias da Petrobrás. No Paraguai, o presidente Fernando Lugo quer rediscutir o preço da energia que recebe do Brasil pela geração de Itaipu, a hidrelétrica binacional inaugurada há 40 anos pelos ditadores Stroessner e Médici. Na Argentina, a crise econômica bota em rota de colisão a presidente Cristina Kirchner com o poderoso empresariado agropecuário e acirra as divergências com o jornal Clarín, o maior grupo privado de comunicação do país.
No Uruguai, que se livrou da ditadura no mesmo ano que o Brasil, em 1985, quebrou-se em 2005 a secular alternância entre os dois partidos tradicionais, Nacional e Colorado, derrotados pela esquerda moderna da Frente Ampla. No governo do socialista Tabaré Vázquez, eleito após duas tentativas fracassadas, o PIB uruguaio cresceu 30%, a pobreza caiu de 32% para 20% e o desemprego despencou de 13% para 7%. As exportações agropecuárias tiveram um crescimento recorde e a produção industrial cresceu como nunca.
Resultado: a esquerda ganhou de novo, em 2009, colocando na presidência José Mujica, um ex-guerrilheiro preso e torturado pela ditadura, como a brasileira Dilma Rousseff. O antigo dirigente do movimento de guerrilha Tupamaro chegou ao poder pelo caminho mais longo e saudável da democracia, trocando o fuzil pelo calibre do voto popular. Com uma biografia de vida e luta mais radical do que o antecessor Vásquez, o velho guerrilheiro Mujica se declarou mais próximo do moderado Brasil do que da trovejante Venezuela, prometendo manter uma economia "ortodoxa e prolífica, com forte conteúdo social".
Mujica e Dilma são bons exemplos para a esquerda continental de que o poder hoje se conquista, e se mantém, muito mais pelo resultado do que pela retórica. A ideologia, agora, está no bolso. Como já ensinava o marqueteiro James Carville, na campanha de 1992 em que Bill Clinton derrotou George Bush, pai: "É a economia, estúpido!"