Ronald de Carvalho, Jornalista - Instituto Alvaro Valle
O mais importante teste de qualidade educacional no mundo é o PISA, sigla em inglês para Programa Internacional de Avaliação de Alunos, promovido a cada três anos com jovens de 15 anos em 65 países pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o clube dos países desenvolvidos. No primeiro teste em 2000, que mede os resultados em Matemática, Ciências e Leitura, o Brasil ficou em último lugar. No primeiro lugar, em todos os testes, se alternavam os favoritos de sempre: Japão, Finlândia, Coréia do Sul, Canadá. Até que no último teste, em 2009, quando o Brasil oscilou entre o 49º e o 53º lugar, aconteceu o inesperado: o grande campeão, nas três categorias, foi a impetuosa China, representada por Xangai.
Com 19 milhões de habitantes numa área que representa um sétimo do Estado do Rio de Janeiro, Xangai é uma província rica, com renda per capita de US$ 11 mil, duas vezes e meia a média chinesa. A segunda colocada, Coréia do Sul, tem o dobro da renda média de Xangai e a Finlândia, terceira no ranking, ganha quatro vezes mais na renda per capita. A obsessão chinesa pelos estudos mostra que a arma mais decisiva para explicar a aparição meteórica da China como potência mundial e única rival direta dos Estados Unidos não é seu arsenal nuclear, nem seu poderio econômico, muito menos sua massa populacional. O grande míssil chinês é a educação.
Em 2013, segundo a Royal British Society, a China vai superar os Estados Unidos em produção científica. Desde 1999, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento no país crescem 20% ao ano. Só em 2006 o país formou 1,5 milhão de cientistas e engenheiros. No ano passado, apenas a educação privada investiu US$ 80 bilhões no setor. O paraíso das bugigangas de plástico dos camelôs está se transformando num braço essencial do sofisticado Vale do Silício californiano, Meca da indústria da informática. O país que há duas décadas produzia guarda-chuva e isqueiro descartável hoje é à base de mão de obra barata, quase escrava, para gigantes multinacionais como Nike e Apple, produzindo lá os tênis e tablets que correm e conquistam o mundo.
Os números vigorosos explicam o fenômeno chinês. Com o quádruplo da população norte-americana, a China será maior que os Estados Unidos quando tiver estendido ao país a renda média de Xangai, a São Paulo chinesa, US$ 11 mil, o nível per capita do Brasil. Apenas uma cidade tem o poder econômico de um país. Se alcançar o PIB médio da combalida Grécia (US$ 29 mil em 2010), a economia chinesa será maior do que os PIBs dos Estados Unidos e da União Europeia... somados! No atual ritmo de crescimento anual da economia dos dois maiores gigantes mundiais (China 9%, Estados Unidos 2%), os chineses vão ultrapassar os americanos em 2024. Enquanto o mundo definhava na crise da bolha de 2008, a China mantinha o pé no acelerador de 10% de crescimento.
Após três décadas de crescimento acelerado e migração urbana, a China ainda possui 53% de seu 1,3 bilhão de habitantes no campo, o triplo da população brasileira. Ou seja, existe um exército de reserva de 500 milhões de pessoas para abastecer as linhas de montagem de suas fábricas com mão de obra barata - e cada vez mais qualificada por uma educação cada vez melhor. Os empresários estrangeiros na China reclamam da falta de inventividade, iniciativa e capacidade de liderança de seus funcionários chineses, que em contrapartida são ótimos para cumprir ordens, sem questioná-las e muito menos pensar sobre elas. Essa característica de comportamento passivo, aliada a uma educação consistente, pode ser a química perfeita para explicar a erupção de eficiência e rendimento da explosiva economia chinesa.
A obsessão pelo sucesso e pelo resultado, atestada agora pela inesperada liderança no PISA, ganhou o mundo pela internet com o vídeo amador recente mostrando uma criança chinesa de quatro anos, vestida apenas de calção e sapatos, correndo sobre a neve do Central Park em Nova York. Era uma impiedosa exigência dos próprios pais, que justificaram o exagero pela necessidade de fortalecer o caráter e a saúde de seu filho. Na China, a rotina escolar pode ser traduzida como tirania no ocidente. Crianças de quatro anos têm uma carga horária diária na escola de oito horas, ou até 12 horas para os mais velhos. O regime de internato, de segunda a sexta, é praxe em qualquer boa escola.
Algumas salas de aula oferecem suporte para soro na veia com componentes de sódio e vitamina para suportar a fadiga de horas adicionais na escola. O jovem que estuda exaustivamente para o Gao Kao, o temível exame pré-universitário da China, não reclama de sua sorte. Os avós eram camponeses e os pais mal completaram o ensino médio, mas ele sonha com um mestrado em Direito na Universidade americana de Stanford: "Quero ser um dos melhores advogados do mundo", diz Sun Juntao, o jovem que não fuma, não bebe, não usa droga e não namora para não atrapalhar seu roteiro de sucesso. Um médico de Xangai, Xu Junmin, mantém o filho, Huaze, num internato de Xangai, com um projeto definido: "Espero que meu filho seja um dragão", diz, citando o animal que na mitologia chinesa significa poder e excelência.
O que importa, para ele, é o dragão, não a felicidade. Mas esse rigor já produz controvérsias na própria China. O professor Zhu Yongxin, um dos 2.987 deputados da Assembleia Nacional Popular, o maior parlamento do mundo, observa: "Acho que a educação chinesa poderia ser mais descontraída. Ela deveria ser uma experiência feliz, menos severa". A forte disciplina do caráter chinês vem dos tempos dos mandarins, no século 7 d.C, quando os melhores cargos da burocracia imperial eram reservados aos melhores classificados nos exames acadêmicos. A China, portanto, além da pólvora e do papel, inventou a meritocracia. Quando se tornar a primeira economia do mundo, dentro de uma década, o centro científico do mundo, que já foi a Inglaterra e a Alemanha e hoje são os Estados Unidos, vai se mudar para o Oriente. "Não temos ainda um Nobel, mas, quando tivermos um, será o primeiro de muitos da China", antecipa o professor Fei Xu, vice-reitor da Universidade Jiao Tong, de Xangai.
Durante um ano, em 1935, um exército rebelde de 100 mil homens, entre soldados e camponeses, ziguezagueou a pé por 10 mil km do inóspito interior da China, fugindo à perseguição de seus inimigos. A chamada 'Grande Marcha' foi um movimento épico que consolidou o comunismo chinês e firmou o mito de seu maior líder, Mao Zedong. Três décadas depois, escolas e universidades foram fechadas, alunos, professores e intelectuais foram presos e mandados para 'campos de reeducação'. Essa loucura, conhecida ironicamente como 'Revolução Cultural', mergulhou o país durante dez anos (1966-76) no abismo das trevas, sufocando o pensamento, a técnica e o saber. Era a China, indo de Mao a Piao.
Agora, redimida e exaltada pela educação que um dia tentou sufocar, a China volta a empreender uma 'Grande Marcha', que só estará completa quando a economia esplendorosa encontrar uma democracia vigorosa. Esta lição, por enquanto, continua pela metade. O dragão da liberdade ainda não ruge para os chineses.