Ronald de Carvalho, Jornalista - Instituto Alvaro Valle
O Egito se construiu como nação pela disciplina de 31 dinastias de faraós ao longo de três milênios, sólido e majestoso como seus monumentos eternos que resistem à poeira do deserto e do tempo. O Egito se forjou como ditadura pela força de quatro militares que se sucederam no poder na segunda metade do século 20, a partir do golpe de 1952 comandado pelo coronel Gamal Abdel Nasser, que derrubou o corrupto rei Faruk. O Egito tenta se construir agora como democracia, com a derrubada em 2011 de seu último ditador, o general da Força Aérea Hosni Mubarak, que controlava o país com mão de ferro há 30 anos. A mais populosa e mais importante nação árabe da África, com 82 milhões de habitantes, pela primeira vez na história foi colocada diante das urnas eleitorais para uma eleição livre de seu presidente, o primeiro pleito que inclui candidatos civis.
No primeiro turno, dias 23 e 24 de maio, 50 milhões de eleitores se dividiram entre 13 candidatos. Nenhum teve 50% dos votos para garantir a eleição. Os dois mais votados, Mohamed Mursi e Ahmed Chafik, que disputarão o segundo e decisivo turno em 16 e 17 de junho próximo, indicam que a construção do Egito como democracia será ainda mais pedregosa do que suas pirâmides imemoriais. São representantes do novo que assusta e do velho que assombra. O novo é a força da religião, representada pelo partido da Imandade Muçulmana, a organização islâmica encarnada no candidato Mursi, um engenheiro de 60 anos educado nos EUA e que integra um grupo de resistência ao sionismo. O velho é o poderio militar, encarnado por mais de meio século de ditadura que tenta se prolongar na figura do candidato Chafik, um ex-piloto de caça de 70 anos, general da Força Aérea e último premiê do ditador Mubarak. O país se divide, assim, entre o apelo radical do fundamentalismo religioso e a retórica de ordem que imperou nas últimas seis décadas.
O Egito continua sem Constituição, embora tenha eleito há pouco uma Assembleia Popular onde 2/3 dos 508 deputados são de partidos islâmicos, que devem estabelecer o peso da Chariá (a lei muçulmana) na vida nacional - 46% dos deputados são do partido da Liberdade e Justiça, da Irmandade Muçulmana. A difícil transição democrática acontece num cenário econômico ainda mais conturbado. Numa nação que exige uma crescimento de 7% ao ano para atender as demandas de sua população, o Egito deve crescer apenas 3% este ano. Mais de 44% dos egípcios vivem com menos de dois dólares ao dia e 20% da população de 83 milhões vivem na pobreza. Para eles, 60 a 80% por cento do orçamento familiar é destinado à alimentação. A média para uma família americana é de apenas 12%. Na Ásia, o grão essencial é o arroz, no México é o milho e, no Egito, é o trigo, evocado desde as vicissitudes dos tempos bíblicos de José. As más colheitas de trigo, assim como as secas no Vale do rio Nilo, estão associadas aos anos de vacas magras. Desde então, sob diversas formas o Estado fornece subsídios ao grão da sobrevivência egípcia. Ainda assim, somente em 2011 o preço do trigo subiu 70%.
A incerteza política levou ao fechamento de fábricas, ao aumento do desemprego e à fuga dos investimentos estrangeiros. O saldo de US$ 6,4 bilhões na entrada de divisas em 2010 virou um buraco de US$ 500 milhões em 2011. Atrás da vazão de dólares vem a fuga dos turistas assustados, num setor que representa 6% do PIB de US$ 218 bilhões. O turismo caiu um terço entre 2010 e 2011: os US$ 13 bilhões de receita minguaram para US$ 8,8 bilhões. Os turistas não passaram de 10,5 milhões, um número 2,8 milhões menor do que o de 2011. A maior queda foi causada pela Europa, de onde provém 33% do fluxo turístico.
Se o candidato da Irmandade Muçulmana confirmar o favoritismo e ganhar no segundo turno, o temor dos turistas poderá ser ainda maior. "O Islã é a solução, o Alcorão é nossa Constituição, a Chariá é a nossa guia", bradou Mohamed Mursi no seu primeiro comício de campanha. A organização rejeita o islamismo moderado e tem um lema fundamentalista que não deixa dúvidas: "Deus é o único objetivo, Maomé é o único líder, a jihad (guerra santa) é o único caminho. Morrer pela jihad de Deus é a nossa única esperança". A ortodoxia religiosa não permite sonhar com o fim de uma maldição que aflige o Egito e outros países da região: a infibulação, a mutilação vaginal pela amputação do clitóris, uma prática mais cultural do que religiosa.
A chamada circuncisão feminina tem registros dos tempos dos faraós, antes de Cristo, na região do Nilo. Os hadiths, que dão a base da lei islâmica, definem que "circuncisão é um caminho de Maomé (sunna) para o homem e preservação da honra para a mulher". A justificativa muçulmana para esta estúpida violência é que ela "torna a mulher mais agradável para o homem". Embora a mutilação genital tenha sido proibida no Egito em 2007, depois que uma menina de 12 morreu durante a operação, cerca de 90% das mulheres entre 15 e 49 anos foram mutiladas. No total, elas somam uma população de 130 milhões de mulheres no continente africano. Até na minoria cristã do Egito, que representa 10% da população, a circuncisão é praticada.
As violências no Egito são a sequência, agora com o final feliz das eleições, de um frenético processo político, a 'Primavera Árabe', que começou literalmente com fogo. No crepúsculo de 2010 , o vendedor de frutas tunisiano Mohamed Bouazizi se imolou, morrendo em chamas como protesto pela difícil condição econômica que vivia. Acendeu-se o rastilho de pólvora que incendiou o Norte da África. Na sequência, tiranias familiares, monarcas senis e presidentes decrépitos foram varridos por multidões que ocuparam praças e redes sociais. Nada menos do que 14 países foram palco de protestos. A fila de ditadores obrigados a renunciar depois de décadas no poder cresceu em 2011.
Zine El-Abidine Ben Ali fugiu da Tunísia em janeiro. Hosni Mubarak renunciou no Egito em fevereiro. Muamar Kadafi foi morto por populares em outubro, encerrando meses de sangrenta guerra civil na Líbia. No Marrocos, o rei Mohammed VI foi obrigado a aceitar uma reforma constitucional e a convocar eleições legislativas em junho. Agora, a turbulência está concentrada na Síria, sob sanções econômicas da Liga Árabe pelo massacre de cerca de cinco mil civis pelo governo de Bashar Assad. Os países mais ricos, como Arábia Saudita, Kuwait e Bahrein não tiveram os regimes ameaçados, mas enfrentaram protestos que deixam claro que a população do Oriente Médio não é mais uma maioria silenciosa.
Os governos da região descobriram, com a Primavera Árabe, que o inimigo estava dentro e não fora de suas fronteiras. Os ricos países do Golfo - incluindo a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Kuwait - se comprometeram a gastar com seus povos mais US$ 157 bilhões, segundo relatório de 2011 da consultoria Merrill Lynch. Isso equivale a cerca de 13,4% do PIB da região. Para evitar o risco de instabilidade, as monarquias do Golfo esbanjaram dinheiro em projetos simpáticos à população, tais como salários mais altos, bônus para os funcionários públicos e casas novas. Isso só foi possível graças a um aumento de 93% no preço médio do petróleo nos últimos três anos.
O Egito vive agora a transformação mais alentadora da região. A inédita eleição de sua história pode deixar para trás séculos de atraso e violência. Estes são os votos do mundo democrático.