Ronald de Carvalho, Jornalista - Instituto Alvaro Valle
Até o rei Juan Carlos I sabe: é mais fácil errar o tiro num elefante na Botswana do que acertar a mira na mastodôntica crise financeira que assombra 46 milhões de espanhóis e esfarela a Espanha, a quarta maior economia da zona do euro. O país adentrou junho como o maior fantasma econômico do mundo, à frente da trágica Grécia, cavalgando uma crise bancária que ameaça derrubar o sistema econômico europeu, incapaz de sustentar o vigor de suas moedas e de evitar o pânico de seus correntistas. A Espanha aguarda, com o fatalismo de um touro sangrando na arena, a reunião de cúpula da União Europeia, no final de junho, na esperança de uma salvadora intervenção supranacional que acalme os mercados. Mas, é pouco provável que a besta espanhola suporte tanto tempo de sangria.
Mais que tudo, a Espanha sofre de uma aguda crise de confiança. A população desconfia do governo, que se desdiz a cada dia. O governo não confia nos bancos, ao ponto de encomendar auditorias estrangeiras que revelaram dificuldades até no Banco de Espanha, o banco central espanhol. A UE não confia nem nos bancos nem no governo espanhol, devido a tantas informações desencontradas e a compromissos desfeitos. A verdade é que o destino dos espanhóis não se decide mais em Moncloa, a residência do primeiro-ministro Mariano Rajoy, mas em Bruxelas, sede da EU, ou em Berlim, bunker de Ângela Merkel, que dirige a locomotiva econômica da Europa e puxa o comboio da austeridade.
O furacão da economia varreu a política, levando de roldão o governo socialista de Zapatero em novembro passado: o PP do conservador Rajoy ganhou 186 das 350 cadeiras do Parlamento, passando de oposição à maioria absoluta. Teve quase 11 milhões de votos contra sete milhões do PSOE, que perdeu mais de quatro milhões de eleitores. Ganhou, mas não entusiasmou: "O ruim é que, por onde ele passa, não limpa. O bom é que, por onde passa, não suja", definiu um jornalista, desenhando o perfil amorfo do novo primeiro-ministro.
Ninguém mostra muito entusiasmo pela sorte da Espanha, embora sua sorte comprometa o entusiasmo de todos. A diretora-gerente do FMI, Christine Lagarde, desmentiu no final de maio que o Fundo tenha um plano de resgate para o país, agravando o espírito de manada dos correntistas cada vez mais assustados. Em março, as transferências dos correntistas espanhóis para o exterior bateram o recorde de 66 bilhões de euros. No mesmo período de 2011 ingressaram na Espanha capitais no valor de apenas 21 bilhões de euros. Só no primeiro trimestre deste ano, os investidores já esvaziaram 97 bilhões de euros dos cofres espanhóis.
Assim, a Espanha é obrigada a uma cascata cada vez mais torrencial de emissão de títulos para financiar sua dívida pública a taxas superiores a 6% ao ano - próximas aos 7% sufocantes, intoleráveis que levaram Portugal e Grécia à beira do abismo. Só para comparar, a Alemanha, país mais rico da Europa, se financia a taxas próximas de 0%. Um lado cômico da tragédia é a tentativa juvenil do Bankia, quarto maior banco privado do país, para escalar a confiança de jovens investidores: está oferecendo como brinde a novos clientes uma felpuda toalha com a imagem do Homem-Aranha. Ganha o mimo quem economizar 300 euros (US$ 380) até o fim do mês. A cada 50 euros guardados no banco, o cliente concorre a uma viagem a Nova York, onde supostamente vive o super-herói.
O Bankia é um dos vilões principais deste pesadelo espanhol. Em meados de 2009, o governo passou a estimular a fusão de bancos para prevenir falências. Em menos de um ano, o sistema bancário encolheu de 45 para 17 bancos. O Bankia é o resultado da fusão de sete pequenos bancos regionais, que nasceu em 2010 com 12 milhões de clientes e um volume de negócios de 486 bilhões de euros, fortemente lastreados no temerário setor imobiliário, o mesmo onde estourou a bomba econômica que implodiu os Estados Unidos dois anos antes. Insensível, o governo não percebeu os primeiros focos de incêndio, um ano antes, e teve que realizar sua primeira intervenção bancária no país, para resgatar a Caja Castilla-La Mancha. Em maio de 2010, outro solavanco, que obrigou a intervenção na CajaSur, um banco administrado pela poderosa igreja Católica, religião tradicional de 80% do país.
Em maio passado, finalmente, veio o abalo final, com o pedido de socorro do Bankia, que gerou o pânico na Espanha e temores gerais no continente. A conta da fatura do gigante era proporcional ao seu tamanho: 24 bilhões de euros, que a Espanha só poderá pendurar com a ajuda da União Europeia, cada vez mais sovina e desconfiada. O Bankia não tinha risco de dar certo: "É apenas um grupo de bancos de poupança ligados a regiões envolvidas com negócios imobiliários. Quando se juntam bancos maus, fica-se com um grande banco mau. Nunca um bom banco", definiu Josep Maria Ureta, um jornalista especializado em economia de Barcelona.
Dias depois, a agência de classificação Moody's rebaixou a nota de quatro regiões e de 16 bancos, penalizando gigantes como Santander e BBVA. O efeito dominó torna ainda mais precária a situação do sistema bancário espanhol de um país cada vez mais desorientado sobre o que fazer. Em 2009, quando a classificação financeira da Espanha foi rebaixada pela Standard & Poor's, o governo tentava um plano de estímulo para elevar o PIB em 5% , planejando gastos de 8 bilhões de euros em infraestrutura, a redução de impostos e um inacreditável "cheque-bebê": cada recém-nascido no país ganhava um bônus de 2.500 euros.
A libido nacional, contudo, já está bastante comprometida. Um de cada cinco espanhóis está desempregado, 20% da população, a maior taxa do continente (a Grécia ainda capenga com 11% de desemprego). A cada dia, 350 famílias perdem suas casas, formando hoje uma multidão de 300 mil pessoas - suficiente para lotar três vezes o maior estádio da Europa, o Camp Nou, do Barcelona de Lionel Messi, com capacidade para 98 mil torcedores. As contas do Estado já apresentam um déficit de 11% e a dívida pública atinge 70% do PIB. Juntando o endividamento público e privado, o buraco das contas nacionais bate em 390% da riqueza nacional, ou seja, o país já deve quase quatro vezes tudo o que produz.
Até o turismo, base essencial da economia do país e responsável por 10% do PIB de 1,2 trilhão de euros, entrou em crise. Segundo maior destino turístico do mundo, logo atrás da França, a Espanha hoje atrai menos gente. Foram 58,7 milhões de turistas em 2007 e não passaram de 52,7 milhões em 2010. Desse total, em 2010, 360 mil dos turistas eram brasileiros, parcela importante de um comércio bilateral que cresceu 20% em 2011, beirando os 6,4 bilhões de euros.
Na noite de domingo, 3 de maio, o rei Juan Carlos I e 14 turistas especiais, executivos das maiores corporações da Espanha, desembarcaram em Brasília para uma reunião de trabalho com a presidente Dilma Rousseff. Quanto maior a crise espanhola, maior a dependência de seus parceiros comerciais. Com 68 bilhões de euros investidos aqui, a Espanha é o segundo maior investidor estrangeiro no Brasil. Um dos membros da delegação real é o Santander, o banco rebaixado na Espanha , que realizou em terras brasileiras 28% do lucro que teve no ano passado. A Telefônica, corporação com queda de 47% no balanço financeiro de 2011, conseguiu mais da metade do seu lucro no período com os 3,4 bilhões faturados por seu braço brasileiro, a operadora Vivo.
As duas empresas espanholas, neste ponto, mostraram no Brasil uma pontaria mais certeira do que o rei Juan Carlos nas estepes africanas.