Ronald de Carvalho, Jornalista - Instituto Alvaro Valle
A destituição do presidente paraguaio Fernando Lugo, no dia 22 de junho, é um recorde mundial para os arrastados padrões da política: o fulminante processo parlamentar começou na véspera, quinta-feira, 21, na Câmara dos Deputados, que aprovou a derrubada por esmagadores 76 votos a um. Acabou 31 horas depois, no final da tarde de sexta, 22, com a aprovação de 39 dos 45 senadores, contra quatro votos e duas abstenções. Entretanto, todo este movimento político foi feito à luz da Constituição paraguaia, que diferente da nossa e de outros países, já faz tempo, permite esse rito para um processo de impeachment.
Apesar da legalidade, a acelerada derrubada parlamentar de Lugo gerou fortes dúvidas na comunidade internacional. Lugo, um ex-bispo católico de 61 anos, é o primeiro governante de esquerda na história de um dos países mais pobres do continente, baseado estruturalmente na agricultura, que produz metade do PIB de US$ 35 bilhões e responde por 90% das exportações.
Num país agrícola onde 2% da população controlam 90% das terras, a reforma agrária tem forte apelo - e isso ajuda a explicar a eleição de Lugo e também sua queda. As razões para a destituição veio de uma desastrada operação militar de 150 homens contra um acampamento de sem-terra numa fazenda próxima à fronteira com o Brasil. No confronto, morreram 11 agricultores e seis militares. Esta foi a base legal do processo que derrubou Lugo.
A derrubada parlamentar de Lugo ricocheteou numa reação de alguns países do continente. Brasil e Uruguai chamaram seus embaixadores 'para consulta', o que no jargão diplomático equivale a um puxão de orelhas. A Argentina, mais dura, retirou seu embaixador de Assunção. O Paraguai recebeu um cartão vermelho temporário do Mercosul, que se reúne sexta-feira na cidade argentina de Mendoza, sem a presença do novo presidente, Federico Franco. Da mesma forma, os nove países da Unasul, a União de Nações Sul Americanas, suspenderam o Paraguai por descumprimento à norma democrática que rege os países da região, que na sangrenta metade final do século 20 vivia no fundo do poço das ditaduras militares.
De olho no calendário de 31 horas que marcou o início e o fim do processo contra Lugo, o chileno José Miguel Insulza, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) definiu o sentimento comum dos países: "Há uma percepção generalizada de que o impeachment constituiu um ato de desrespeito ao devido processo legal e ao direito de legítima defesa". Esta declaração, como a posição do Brasil e Argentina reflete a absoluta ignorância da diplomacia de alguns países em relação aos comandos constitucionais do Paraguai. Na segunda-feira à noite, a porta-voz do Departamento de Estado americano, Victoria Nuland, confirmou que a titular da Pasta, Hillary Clinton, esteve em contato com o chanceler brasileiro, Antônio Patriota. "Estamos muito preocupados pela velocidade do processo utilizado para esse impeachment e se houve o processo devido", afirmou a porta-voz.
Como os Estados Unidos que aguardam a posição oficial da OEA, o Brasil firmou a cautelosa posição de adotar uma posição comum com seus parceiros do Mercosul e da Unasul.
Apesar da celeridade dos acontecimentos, o governo de Washington não pode se mostrar surpreso, conforme documento vazado pelo Wikileaks.
Três anos atrás, mais exatamente em 23 de março de 2009, um telegrama confidencial da embaixada dos Estados Unidos em Assunção antecipou ao Departamento de Estado os fatos que agora surpreendem o mundo: "Rumores indicam que o general Lino Oviedo e o ex-presidente Nicanor Duarte estão trabalhando juntos para assumir o poder por meio de instrumento legais que deverão afetar o presidente Lugo nos próximos meses. O objetivo: capitalizar sobre qualquer tropeço de Lugo para iniciar o processo político no Congresso, impedir Lugo e assegurar sua própria supremacia política (...)".
O tropeço previsto para Lugo estava solidamente fincado na precária estrutura de terra do país, que tem 406 mil km² de área, o equivalente ao Estado do Mato Grosso do Sul e sua pálida política agrária que claramente estimula as invasões de propriedades privadas no campo. Na papelada do Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e da Terra, contudo, o território paraguaio se estende por 528 mil km², quase do tamanho de Minas Gerais. Existe, portanto, uma diferença entre o mapa oficial e as terras tituladas de 122 mil km², terreno onde caberia todo o Reino Unido. Isto revela o completo descontrole do governo Lugo sobre a área das terras do seu país.
Neste espaço vago vivem cerca de 400 mil brasiguaios, os descendentes de brasileiros que, desde a década de 1960, produzem quase metade da soja que o país consome e exporta. Lugo se elegeu com um discurso radical de esquerda, prometendo reforma agrária e em aberta oposição aos brasiguaios. Como mais da metade dos 7,5 milhões de paraguaios que falam o idioma guarani, além do espanhol, Lugo assumiu o discurso populista e ganhou o patrocínio do venezuelano Hugo Chaves para sua vitória em 2004, com 40% dos votos, quebrando a hegemonia de seis décadas do Partido Colorado.
Neste espaço de instabilidade institucional, Lugo não soube criar uma base estável. Numa Câmara de 80 deputados, tinha apenas três aliados. No Senado de 45 cadeiras, contava com uma bancada de apenas quatro. Para agravar o quadro, convivia com uma Constituição que dava aos seus opositores a cobertura legal para consumar uma destituição sumária que o mundo ainda não tinha presenciado. A decisão do Congresso foi chancelada pela Suprema Corte do país, fechando o caixão sobre o mandato de Lugo que expira dentro de um ano, em agosto de 2013. As próximas eleições presidenciais estão previstas para abril próximo.
No Senado brasileiro, o maior defensor do impeachment de Lugo, foi justamente o único presidente que perdeu o cargo graças a este mecanismo: Fernando Collor, afastado da presidência em 1992. Em discurso na terça-feira, no dia em que a OEA decidia uma posição em bloco sobre o Paraguai, o hoje senador Collor considerou legítima a destituição de Lugo. "Se há norma vigente que prevê o impeachment, e a norma foi cumprida, não há que se falar em golpe de Estado ou quebra da legalidade", ensinou Collor.
O Paraguai aprendeu a lição, que amparado na Lei fez valer sua Constituição.