Ronald de Carvalho, Jornalista - Instituto Alvaro Valle
A Chanceler da Alemanha Angela Merkel, que visitou Portugal recentemente com o objetivo de apoiar as medidas de austeridade adotadas pelo país, em entrevista ao canal português de televisão RTP, explicou: "As medidas de austeridade são eficazes, mas não a curto prazo".
No mesmo período um livro intitulado "O estado a que chegou o Estado", reunindo uma série de matérias publicadas pelo jornal português Diário de Notícias (DN) e organizado pela jornalista Maria de Lurdes Vale, coordenadora da equipa de investigação do DN e pelo economista Eugênio Rosa, descreve um Portugal que muito pouco mudou desde que o escritor Eça de Queiroz, o descreveu no primeiro número da série "As farpas" também uma série de artigos publicados em junho de 1871.
Em um dos seus primeiros capítulos o livro questiona a função e a presença do Estado, destacando: "O Estado, o que é o Estado? Sabemos que existe, mas temos dele uma ideia demasiado confusa. Sabemos que para ele contribuímos, mas que dele pouco recebemos em troca. Sabemos que dá emprego a muitos, mas que são pouco eficientes. Sabemos que é gastador, pouco transparente e desorganizado. Que acumula dívidas. Que é pesado e que nos pesa. O Estado poderia ser desenhado assim: um edifício velho, que foi sendo mal acrescentado ao longo de décadas e décadas, dispendioso, desarrumado, que se vai inclinando qual Torre de Pisa e que apenas se mantém de pé porque os contribuintes se esforçam para segurá-lo através dos seus impostos".
Para estabelecer um paralelo de Eça a Merkel, há uma frase cunhada em Portugal "está tudo como dantes no quartel d'Abrantes" do início do século XIX, quando o general Junot invadiu a Península Ibérica e Portugal. Uma das primeiras cidades ocupadas pelos franceses foi Abrantes, próxima a Lisboa, de onde o general passou a governar o país acéfalo, mas em calma. A frese retrata muito bem a situação atual do país, se comparada com a que foi magistralmente retratado por Eça de Queiróz:
"O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia".
O livro extraído das reportagens do DN, em sua abertura, descreve assim Portugal de hoje:
"Já há muitos anos que temos em Portugal uma crise de valores, um exemplo curto: os atuais alunos em nada respeitam os professores nem a instituição Escola, devido ao fato de não terem a mínima educação em casa. Não será esta crise que irá agravar os valores, a sua degradação será constante, pois infelizmente a Esquerda e a Extrema Esquerda com assento Parlamentar têm feito cada vez mais por isso, e a Direita nunca se consegue mobilizar devido aos fantasmas do passado."
Nas "Farpas" Eça faz um retrato muito próximo ao livro do DN:
"O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Todo o viver espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína econômica cresce, cresce, cresce. O comércio definha, A indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua ação fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo".
Um relatório do FMI, analisando a situação política do país, ressalta: "Portugal vive hoje uma situação de crise econômica e social que se agrava de dia para dia. É fundamental responder-lhe com energia, com ações de efeito imediato, com soluções excepcionais e temporárias, e com uma visão de futuro para o médio e longo prazo. E ,sobretudo, é crucial responder à crise com verdade, porque só com seriedade se constrói a cumplicidade e a confiança entre governantes e governados, que é imprescindível para vencermos as dificuldades".
Na investigação do Diário de Notícias são descritos casos de desperdício, de grandes superfaturamentos em obras, de gastos caricatos e contabilizados os encargos que as futuras gerações terão de pagar por pareceres deitados à rua, reformas milionárias e salários demasiado elevados para um país que pouco ou nada cresceu na última década. No livro o país é mostrado como um caso paradigmático de desperdício, ou seja, uma economia em que os contribuintes pagam demasiados impostos para os serviços públicos que obtêm em troca. E o primeiro volume das Farpas conclui de forma quase trágica a situação de Portugal em 1871:
"Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o juro. De resto a ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. O número das escolas só por si é dramático. O professor tornou-se um empregado de eleições. A população dos campos, arruinada, vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinha e de ervas, trabalhando só para o imposto por meio de uma agricultura decadente, leva uma vida de misérias, entrecortada de penhoras. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do País. Apenas a devoção perturba o silêncio da opinião, com padre-nossos maquinais. Não é uma existência, é uma expiação".
"A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: «o País está perdido!» Ninguém se ilude. Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete, que de Norte a Sul, no Estado, na economia, na moral, o País está desorganizado - e pede-se conhaque! Assim todas as consciências certificam a podridão. Mas todos os temperamentos se dão bem na podridão!"