Ronald de Carvalho, Jornalista - Instituto Alvaro Valle
Para entender os protestos que vem acontecendo em Istambul é preciso saber quem foi Mustafa Kemal "Atatürk" (pai dos turcos), fundador da República da Turquia e seu primeiro presidente. Os protestos, que tiveram como estopim a destruição do Parque Taskim Gezi para a construção de um shopping, foram liderados por um grupo de jovens ambientalistas que empunhavam duas faixas com grande destaque na mídia. Na primeira, estava escrito "Somos todos filhos de Ataturk". Em outra, lia-se: "Não existe democracia islâmica. Existe democracia". E por mais paradoxal que pareça, seus portadores eram jovens mulçumanos, mas seguidores dos princípios de Ataturk, um homem à frente do seu tempo.
O movimento rapidamente se alastrou, com protestos em outras cidades e as faixas foram um recado ao primeiro-ministro Recep Erdogan, no poder há 10 anos, sustentado por um partido islâmico moderado, mas que está reintroduzindo gradativamente o islamismo no país, depois de todo o esforço de modernização feito por Ataturk no início do século passado.
O recado é que a maioria não aceita a volta ao regime islâmico. Segundo um dos analistas políticos que acompanham a crise turca, existem sinais claros do retrocesso. E ele explica que as mulheres, principalmente no serviço público, recebem recados para se vestir com roupas tradicionais se quiserem progredir, o beijo público começa a ser proibido, uma lei recente proíbe a venda e a publicidade de bebidas alcoólicas e nas escolas se reintroduzem cursos sobre o Corão. Tudo isto, mais o envolvimento da Turquia no apoio aos rebeldes na guerra civil da Síria, criaram as condições da revolta que explode agora nas praças.
É uma explosão de muitas causas, não de um partido só e envolve uma ampla classe média secularista, laica e moderna das cidades turcas. O que está ocorrendo na Turquia é uma luta por liberdades públicas e individuais, em um país que está longe dos regimes fundamentalistas do Oriente Médio.
A Turquia moderna foi fundada há 90 anos, após a Primeira Guerra Mundial, sob as ruínas do Império Turco-Otomano, quando um grupo de militares liderados por Ataturk aboliu o regime islâmico e a poligamia, substituiu o direito islâmico por legislação de feitio ocidental e criou o estado laico, ao anular artigo constitucional que declarava ser o Islamismo, a religião do Estado. Prosseguindo nas reformas, separou a mesquita da escola, concedeu direitos iguais as mulheres e independência ao Poder Judiciário. Um princípio político básico para o reformador era a completa independência do país.
Este era um item não-negociável. Ataturk tinha, no entanto, consciência de que esta independência não poderia ser mantida apenas através do uso da força física, como deixou claro em um artigo: "Por independência completa, queremos obviamente dizer independência econômica, financeira, jurídica, militar e cultural completa, e liberdade em todos os assuntos. Ser privado de independência em qualquer um destes itens equivale a privar a nação e o país de toda a sua independência". Por isso programou amplas reformas em diversos aspectos econômicos e sócio-culturais, cujos resultados vieram a formar a espinha dorsal das estruturas legislativas, judiciárias e econômicas da nova república.
A reforma educacional foi ligada à liberação da nação do dogma islâmico, que acreditava ser algo ainda mais importante que a guerra de independência do país, segundo explicou: "Hoje em dia, nossa tarefa mais importante e mais produtiva é a unificação e modernização da educação nacional.
Temos de ser bem-sucedidos neste íten e seremos. A liberação de uma nação só pode ser atingida desta maneira."
Assim, em 1924, o presidente convidou o reformador educacional americano John Dewey para atuar como conselheiro e efetuar reformas e recomendações que visariam modernizar o sistema educacional turco, visando aumentar a taxa de alfabetização, preparando assim melhor os cidadãos para seus papéis na vida pública. Dewey queria implementar a educação pública compulsória para ambos os sexos (que desde então passou a ser um esforço contínuo da república), destacando que uma das principais metas da educação na Turquia deveria ser criar uma geração que tenha crescido alimentada pelo que ele chamava de cultura pública.
As escolas estatais e educação pública em geral passaram a seguir um currículo comum, conhecido como unificação da educação, que foi implementado pela Lei de Educação Nacional. Com a nova lei, a educação se tornou inclusiva, organizada e operada da mesma maneira que a sociedade civil, todas as escolas submeteriam seus currículos ao Ministério da Educação Nacional, um órgão governamental que seguia o modelo dos outros ministérios da época. Estas transformações estabeleceram um caminho direto para a estrutura social tradicional obter uma consciência contemporânea de cidadania. A lei foi aprovada no mesmo dia da abolição do antigo regime islâmico.
A república aboliu simultaneamente dois ministérios islâmicos e subordinou o clero ao departamento de assuntos religiosos. Esta mudança foi uma das bases do secularismo na Turquia. A unificação da educação sob um currículo pôs um fim aos "cleros do Império Otomano", porém não significou o fim das escolas religiosas. Elas simplesmente passaram para a educação superior, até que os governos posteriores a trouxeram de volta para a educação secundária, depois da morte do presidente.
No outono de 1925, Ataturk passou a encorajar os turcos a vestir roupas européias modernas, determinado a forçar o abandono das tradições de vestuário do Oriente Médio. A "Lei do Chapéu " introduziu seu uso no estilo ocidental, no lugar do fez, tornando-o obrigatório para os funcionários públicos. As diretrizes que orientavam as vestimentas apropriadas para estudantes e servidores públicos (qualquer um que trabalhasse em espaços públicos controlados pelo Estado) foram aprovadas durante sua vida. Depois que a maioria dos funcionários públicos, relativamente bem-educados na tradição ocidental, adotaram o chapéu por sua própria vontade, Ataturk usou um, em 1925, durante uma aparição pública em Kastamonu, uma das cidades mais conservadoras da Anatólia, para explicar que era uma peça de vestuário das nações civilizadas. A última parte da sua reforma no vestuário enfatizou a necessidade de se vestir ternos e roupas modernas, em vez de roupas antiquadas e fundamentadas na religião, como véus e turbantes, através da chamada "Lei de Roupas Proibidas" de 1934.
Embora tenha promovido pessoalmente as roupas modernas para as mulheres, Mustafa Kemal nunca fez referências específicas ao vestuário feminino nas suas leis. Nas condições sociais do período, ele acreditava que as mulheres se adaptariam às novas maneiras espontaneamente. Kemal, freqüentemente, foi fotografado em assuntos públicos com sua esposa, Lâtife Usakligil, que originalmente cobria sua cabeça de acordo com a tradição islâmica, porém abandonou o hijab e incitou as mulheres turcas a fazerem o mesmo. Também foi fotografado diversas vezes com outras mulheres vestindo roupas modernas. Ainda assim, ele não parecia se opor a um certo grau de conservadorismo no vestuário feminino: "A cobertura religiosa das mulheres não causará dificuldades . Este estilo simples [de se cobrir a cabeça] não entra em conflito com as morais e costumes de nossa sociedade."
Em 1 de março de 1926, o novo código penal foi aprovado, modelado a partir do código penal italiano. Em 4 de outubro do mesmo ano, as cortes islâmicas foram fechadas. O princípio da laicidade, no entanto, só foi implementado totalmente em 5 de fevereiro de 1937.
Os conceitos de reforma social haviam sido desenvolvidos por ele desde cedo, como fica evidente por seus diários pessoais. Juntamente com seus assessores ele discutia constantemente medidas como a abolição do hijab e outras formas de véus utilizados tradicionalmente pelas mulheres islâmicas, bem como a integração das mulheres na vida social turca. A prática otomana desencorajava interações sociais entre homens e mulheres, alinhando-se com a segregação sexual e o islamismo. A maneira que ele encontrou para lidar com o assunto, expressa em seu jornal em novembro de 1915, era a seguinte:
"A mudança social pode vir através de: (1) educando mães capazes, que tenham conhecimento da vida; (2) dando liberdade às mulheres; (3) um homem pode mudar suas morais, pensamentos e sentimentos vivendo uma vida em comum com uma mulher; pois existe uma tendência interna em direção à atração da afeição mútua."
Ataturk precisava de um código civil para dar seu segundo grande passo em direção à liberdade para as mulheres; o primeiro havia sido assegurar a educação para elas, que fora estabelecida como parte da unificação da educação promovida por ele. Em 4 de outubro de 1926, o novo código civil turco foi aprovado, modelado a partir do código civil suíço. Ele não considerava o sexo um fator na organização social. De acordo com seu ponto de vista, a sociedade marchava rumo a sua meta com todos os seus homens e mulheres juntos e que seria cientificamente impossível para ele conseguir atingir o progresso e tornar o país civilizado se a separação dos sexos continuasse como nos tempos otomanos. Por isso, durante uma reunião, destacou:
"Para as mulheres: Vençam para nós a batalha da educação, e vocês farão mais pelo país do que nós já pudemos fazer. É para vocês que apelo.Para os homens: Se de agora em diante as mulheres não tomarem parte da vida social da nação, jamais conseguiremos atingir nosso desenvolvimento completo. Permaneceremos irremediavelmente atrasados, incapazes de sermos tratados de igual para igual pelas civilizações do Ocidente".