Ronald de Carvalho, Jornalista - Instituto Alvaro Valle
O racismo está crescendo em vários países, inclusive no Brasil. Esta conclusão está contida em um relatório que será divulgado em março próximo, elaborado pelo Relator Especial da Comissão de Direitos Humanos da ONU para as Formas Contemporâneas de Racismo e Discriminação, o senegalês Doudou Diène, encarregado de avaliar a discriminação no mundo e diz que o preconceito é cada vez maior em muitos países e que no Brasil ele está profundamente arraigado em toda a sociedade.
No Brasil, o delegado da ONU passou dez dias cumprindo uma agenda em Brasília, Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Paulo que constou de três perguntas a um eclético grupo de pessoas: a) Existe racismo no Brasil? b) Quais são as manifestações de discriminação e racismo atualmente? e c) Quais são as soluções para combater o problema?.
Cumprida a tarefa, o delegado da ONU disse que ficou "perturbado" com certas coisas que escutou e observou, embora esteja há quatro anos na função e já visitou diversos países, analisando como está o racismo no mundo.
E segundo ele, há um recrudescimento do problema racial. Nos últimos anos, ocorreram três conferências internacionais para combate-lo. A última foi a de Durban. Segundo ele, apesar disso, atos de racismo ocorrem em todos os continentes e se traduzem em violência. E Doudou destaca: "Estamos assistindo à legitimação intelectual do racismo de uma forma que não víamos alguns anos atrás. Samuel Huntington, professor da Universidade Harvard, publicou recentemente o livro Where Are We? ( "Onde estamos?" ), cuja tese principal é que a presença dos latinos na América do Norte é uma ameaça à cultura norte-americana. É um livro de muitas páginas, que legitima a discriminação da população latina nos Estados Unidos. Portanto, vemos que o bicho está saindo da floresta. Criou-se um ambiente no qual essas coisas podem ser ditas agora. O combate ao terrorismo, que é legítimo, acabou justificando a discriminação contra certos grupos árabes. Tudo isso leva a pensar que a discriminação racial e a xenofobia são as ameaças mais graves aos princípios democráticos. É cada vez maior o número de agremiações políticas que adotam discursos racistas. Na Europa, alguns partidos xenófobos vêm obtendo 15%, 20% dos votos. Isso é muito grave".
E no Brasil? Para o delegado da ONU há dois tipos de resposta. E ele explica que no documento que o Brasil assinou em 2001, na última conferência internacional contra o racismo, realizada em Durban, na África do Sul, o presidente Fernando Henrique Cardoso reconhecia a realidade do racismo. Em contrapartida, encontraram-se alguns dirigentes estaduais e federais, que relativizam a realidade e a importância do racismo, com base no argumento ideológico da democracia racial. Notou-se uma grande diferença entre o reconhecimento do racismo pelos aparelhos de Estado e a vontade manifesta de combatê-lo, quando não a própria negação de parte de algumas autoridades. Todas as comunidades encontradas no Brasil - com exceção da japonesa em São Paulo - expressaram com grande dor e sofrimento a profundidade do racismo.
Para o doutor Diène a discriminação constitui o pilar ideológico deste hemisfério, e isso inclui o Brasil. Tendo em conta que o país recebeu 40% da população escrava no mundo, ele foi marcado por essa herança. E ele concluiu que o racismo é uma construção que tem uma extensão intelectual muito intensa, que impregnou a mentalidade das pessoas. Portanto, há duas conclusões preliminares sobre a pergunta. Uma é que o racismo certamente existe no Brasil e a outra é que ele tem uma dimensão histórica considerável.
A democracia racial existe ou se trata de um mito? O professor Rainer Sousa Mestre em seu trabalho "História das Origens do Povo Brasileiro" diz que no Brasil, a história de seus conflitos e problemas envolveu bem mais do que a formação de classes sociais distintas por sua condição material. Nas origens da sociedade colonial, o nosso país ficou marcado pela questão do racismo e, especificamente, pela exclusão dos negros. Mais que uma simples herança de nosso passado, essa problemática racial toca o nosso dia a dia de diferentes formas.
Segundo o professor em nossa cultura poderíamos enumerar o vasto número de piadas e termos que mostram como a distinção racial é algo corrente em nosso cotidiano. Quando alguém auto define que sua pele é negra, muitos se sentem deslocados. Parece ter sido dito algum tipo de termo extremista. Talvez cheguemos a pensar que alguém só é negro quando tem pele "muito escura". Com certeza, esse tipo de estranhamento e pensamento não é misteriosamente inexplicável. O desconforto, na verdade, denuncia nossa indefinição mediante a ideia da diversidade racial.
Dessa maneira, é no passado onde podemos levantar as questões sobre como o brasileiro lida com a questão racial. A escravidão africana instituída em solo brasileiro, mesmo sendo justificada por preceitos de ordem religiosa, perpetuou uma ideia corrente onde as tarefas braçais e subalternas são de responsabilidade dos negros. O branco, europeu e civilizado, tinha como papel, no ambiente colonial, liderar e conduzir as ações a serem desenvolvidas. Em outras palavras, uns (brancos) nasceram para o mando, e outros (negros) para a obediência.
No entanto, também devemos levar em consideração que o nosso racismo veio acompanhado de seu contraditório: a miscigenação. Colocada por uns como uma estratégia de ocupação, a miscigenação questiona se realmente somos ou não pertencentes a uma cultura racista. Para outros, o mestiço definitivamente comprova que o enlace sexual entre os diferentes atesta que nosso país não é racista. Surge então o mito da chamada democracia racial.
Sistematizado na obra "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, o conceito de democracia racial coloca a escravidão para fora da simples ótica da dominação. A condição do escravo, nessa obra, é historicamente articulada com relatos e dados onde os escravos vivem situações diferentes do trabalho compulsório nas casas e lavouras. De fato, muitos escravos viveram situações em que desfrutavam de certo conforto material ou ocupavam posições de confiança e prestígio na hierarquia da sociedade colonial. Os próprios documentos utilizados na obra de Freyre apontam essa tendência.
Porém, a miscigenação não exclui os preconceitos. Nossa última constituição coloca a discriminação racial como um crime inafiançável. Entre nossas discussões proferimos, ao mesmo tempo, horror ao racismo e admitimos publicamente que o Brasil é um país racista. Tal contradição indica que nosso racismo é velado e, nem por isso, pulsante. Queremos ter um discurso sobre o negro, mas não vemos a urgência de algum tipo de mobilização a favor da resolução desse problema.
Ultimamente, os sistemas de cotas e a criação de um ministério voltado para essa única questão demonstram o tamanho do nosso problema. Ainda aceitamos distinguir o negro do moreno, em uma aquarela de tons onde o último ocupa uma situação melhor que a do primeiro. Desta maneira, criamos a estranha situação onde "todos os outros podem ser racistas, menos eu... é claro!". Isso nos indica que o alcance da democracia é um assunto tão difícil e complexo como a nossa relação com o negro no Brasil.
A verdade é que o Brasil é um dos países mais racistas do mundo, mas o racismo é velado. Este racismo é visto pelo olhar de quem vem de fora, como no documentário Open Arms, Closed Doors e aborda o problema do nosso racismo disfarçado Foi essa proposta que o angolano Badharó, protagonista do documentário feito para a rede de TV Al Jazeera e que foi veiculado em 130 países, fez quando chegou ao Brasil em 1997 esperando encontrar o Rio de Janeiro que ele via nas novelas.
Segundo ele, discutir o racismo na sociedade brasileira sempre é um assunto controverso. Para início de conversa, uma parcela significativa da nossa população insiste em dizer que este é um problema que não enfrentamos. Somos miscigenados, multirraciais, coloridos. Como um país assim pode ser racista?
Badharó é um dos milhares de angolanos que vieram viver no Brasil. Depois de fugir da guerra civil no seu país de origem, escolheu aqui como novo lar. Para ele, um país sem conflitos, alegre, aberto aos imigrantes e cuja barreira da língua já estava ultrapassada à partida. Foi parar no Complexo da Maré, onde está localizada a maior concentração de angolanos do Rio de Janeiro.
Para quem defende que o Brasil não é um país racista, vale ouvir o que ele, um imigrante negro, tem a dizer sobre a nossa sociedade. Badharó não nasceu aqui, não carrega nossos estigmas, não foi acostumado a viver num lugar em que muitos brancos escondem a bolsa na rua quando passam ao lado de um negro. Depois de 15 anos vivendo numa comunidade carioca, ele tem conhecimento de causa suficiente para afirmar: "O Brasil é um dos países mais racistas do mundo, mas o racismo é velado". O documentário segue a rotina deste rapper de 35 anos e mostra o dia a dia de quem sofre na pele uma cascata de preconceitos, por ser pobre, negro e imigrante.
Além de levantar o tema do nosso racismo disfarçado, o documentário propõe, também, uma outra discussão: agora que estamos nos tornando um país alvo de imigrantes, será que estamos recebendo bem esses novos moradores?
A ascensão do Brasil como potência econômica e o declínio da Europa, principal destino de imigração dos africanos, nos tornamos um foco para quem não apenas procura uma situação melhor de vida, mas para quem procura uma melhor educação ou mesmo um bom posto de trabalho. São muitos os estudantes africanos de língua portuguesa que desembarcam no Brasil. Segundo o Ministério das Relações Exteriores, Angola foi o quarto país do mundo que mais solicitou visto de estudantes no Brasil em 2012. Com esta nova safra de imigrantes, basta saber como vamos nos comportar.
Europeus e norte-americanos encontram nossas portas escancaradas e nossos melhores sorrisos quando aportam por aqui, mesmo que estejam vindo de países falidos e em situação irregular. No entanto, um estudante angolano com visto e com dinheiro no bolso, continua sofrendo preconceito. Foi este o caso da estudante Zulmira Cardoso, baleada e morta no Bairro do Brás, em São Paulo, no ano passado. Vítima de um ato racista, a estudante virou o mote de uma musica que Badharó compôs para que o crime não fique impune. Isto porque tanto as autoridades brasileiras quanto as angolanas não deram sequência nas apurações e o crime segue impune.
A tentativa de abafar qualquer problema de relacionamento entre as duas nações pode afetar as interessantes parceiras comercias que existem entre os dois governos. Para todos os efeitos, continuamos sendo ótimos anfitriões.
Estamos de braços abertos, mas de corações apertados.